
tem um bicho que chega e corrói. às vezes derruba e imobiliza. não dá pra prever quando ele vem, nem como e o quanto vai te devorar. no início, dá pra tentar mover os dedos dos pés, das mãos, lembrar que ainda falta arrumar a cama, a agenda do dia, o que mais precisa ser feito, mas esse esforço é inútil. e tudo que você tem a fazer é ficar imóvel, até que o bicho se alimente do que for necessário e vá embora.
não é fácil aceitar que esse bicho, na real, faz parte do que é a gente é. pelo menos por um instante. não é o que te define, mas, enfim, está dentro de você.
quando isso se torna real na cabeça da gente, dá medo. porque você entende que se conhece cada vez mais e o lado do bicho não é bonito, nem divertido tampouco atraente.
as pessoas nos conhecem como personagens, nos colocam em caixas por gostos, pelo que fazemos e como nos apresentamos. a que gosta de música, a que escreve, a morena, a ruiva, a alta, a dos gatos, a que lê, a divertida. ninguém quer conhecer de fato a que tem um bicho corroendo por dentro.
por anos me sinto fazendo parte de álbuns de figurinhas. eu sou uma das dezenas, centenas de figurinhas entre as tantas que aparecem pela vida.
quando esse bicho chegou, compreendi com clareza que conhecemos apenas uma casca de algumas pessoas, pequenas versões que não cabem na descrição dessas figurinhas. faz tempo sou muito boa em ver quando alguém chega ao limite e não quer passar da superfície, mas às vezes eu me deixo enganar por uma ingenuidade esperançosa quase adolescente.
sinto muito, mas a honestidade é tudo que consigo oferecer e esse bicho que está aqui dentro de mim me mostra com clareza que vai ser cada mais difícil ser uma figurinha.
tantas conversas começadas, tantas piadinhas e memes compartilhados. pequenas histórias que mostram além da casca pra poucos, mas no fim, no fim mesmo, sou mais uma figurinha.
se conhecer melhor tem esse lado frio e sombrio no qual a gente encara de frente o que não faz sentido, mas que aceitamos porque a vida é pesada e migalhas de alegria fazem bem temporariamente.
eu nem sabia da existência desse bicho quando comecei a entender isso e a me descolar de alguns álbuns. agora tenho certeza que só vai fazer sentido quem tiver estômago pra explorar além da casca, principalmente nos dias que o bicho se alimenta.
fiquei pensando se usava essa analogia do estômago porque parece que é uma tarefa muito difícil quando, na verdade, ela demanda um esforço que pouca gente está disposta a encarar. eu já executei essa tarefa mais vezes do que gostaria e sei que é possível, mas demanda uma certa disposição. poderia dar um curso sobre esse tema, palestras e escrever livros.
eu sei tanto sobre isso que compreendo que encontrar quem queira ir além da superfície é quase tão raro quanto ter sangue dourado. é isso que o bicho sussurra no meu ouvido algumas noites e me paralisa, mas estou seguindo. tentando que essa voz fique cada vez mais distante. não acredito que deixarei de ouvir porque esse bicho me transformou, só não quero mais que ele me imobilize.